bárbara schall
textos
sobre
a velha
instalação visual-sonora.

cerâmica e peça sonora.
tamanho variável.
2022
trabalhos
*
projetos
Vi a Velha sussurrando na fumaça para que ela se lembrasse do que já foi, árvore, fogo, luz e calor. O sussurro é uma prática mnemônica feminina, me disse, das que colhem os restos, estórias, lembranças e rastros nem sempre visíveis aos olhos humanos. Essa prática do sussurro é o sopro de vida que desencadeia o ressurgimento, a corrente que reativa os corpos, engana a passagem do tempo cartesiano, que ao passar por perto não se dá conta de sua própria retenção, embalado pela voz, se distrai e esquece que deve passar. Quando pára, o tempo também faz um ruído, 'ouça', ela me disse.
Entre o grito, o sussurro e o silêncio, a Velha me ensina que devemos, nós as coletoras, nos introduzir no tempo, nos seus intervalos, e introduzi-lo também nos espaços, nos corpos e nos territórios que ele mesmo não esperava entrar. Esse caminho é orientado pelo ar, por suas densidades e passagens, condensações, retrações e expansões, e que saindo de nós, de nossa cavidade, se forma como bolha deixando-se levar, pelas vibrações sonoras que provocamos na atmosfera. Precisamos sussurrar para manter-nos vivas, ativando nossos músculos, assoprar as lembranças que fazem contorcer as memórias que nos ultrapassam, fazendo o tempo caber no tamanho exato do nosso corpo, inventando um passado e projetando um futuro, ou ainda indo até um passado que fica no futuro. O sussurro, mais do que o grito, é capaz de infiltrar, nas frestas das janelas, nos vãos da terra, nas fissuras das peles, porque ele tem o tempo da chuva fina e constante, garoa que avança lenta umedecendo o solo, preparando a terra para a brotação.
O trabalho A Velha é composto por uma carta-poesia baseda nos ensinamentos e vivências das velhas que foram presentes na minha vida até hoje e por peças de cerâmica moldadas diariamente. No exercício de retomada das vivências e experiências a partir de uma convivência intensa marcada pelos ensinamentos das avós, fui escrevendo trechos das memórias, frases e sonhos que permearam nossa vida comum.


Guiada pelas lembranças de generosidade, pelas mãos acostumadas ao cultivo e pelos sopros e sussurros fui aos poucos tecendo uma colcha de retalhos como me foi ensinado, compondo com o que se tem em mãos e com o que se tem na memória, na tentativa não de fazer permanecer vivo, mas justamente de fazer morrer bem. Viver e morrer bem, foram os grandes ensinamentos passados por essas mulheres que acima de tudo cultivavam e faziam brotar.
A coleta das lembranças acompanhou o trabalho inteso das mãos, através do gesto de fazer sementes, ou pequenos seres capazes tanto de guardar essas histórias, quanto de compartilhá-las, através do eco de seus túneis e cavidades. O trabalho com a mão foi a forma de manter o corpo em luto de pé, resistente, e pronto para ser continuidade; dos rastros e histórias que foram sendo deixadas e delegados e que escolhi coletar, guardando-os nas pequenas peças, do tamanho da mão, que como pequenos seres bolseiros me ajudam a narrar histórias, testemunhar acontecimentos.


Durante o longo processo de realização do trabalho, iniciado com Otília e Beatriz, muitas velhas foram somando o coro de sussurros, Dona Tuninha, Umbelina, Vó Maria, Donana, Jacira, Virgínia, Ana, Maribela, Dadá, Isabel, Rosa, Genoveva, Vivi, Teresa... Todas enovelando, alinhavando, ensinando e plantando, juntas, um mundo permeável e fértil.